segunda-feira, 23 de abril de 2007

prato do dia - O Verdadeiro Shakespeare

O futebol sempre foi um terreno fértil para a farsa. Por conta de tudo o que ele tem de humano – e sabendo que o homem é o único animal que se falsifica – não são poucos os exemplos de ilusionistas, de charlatões. Vamos a alguns. Desafio o amigo a fazer um vídeo com todos os grandes gols, e as jogadas decisivas que aquele Guti do Real Madrid já fez. Teríamos um material de 15, talvez 20 segundos. Querem outro exemplo? Eu tenho. O português Pauleta; “o avançado que não faz golos”. Outro mais? – e nesta hora sei que muitos se levantarão-Seedorf. Este engana bem. É o maior “cerca-lourenço” do mundo. Uma mistura do Beto com o Paulo Miranda. A única diferença é que para ele a maconha é liberada. Isto para não falar dos nossos. Isto para não falar dos nossos. Ocorre que agora me lembrei que não era sobre a farsa que eu queria falar.
Algumas das nações ocidentais, na falta de um livro ou de uma doutrina sagrada, elegem um grande autor para que este a represente. Explico-me melhor. Cada povo pode ser representado por um livro – e, com efeito, o Corão representa os muçulmanos e assim por diante. Para algumas outras nações entretanto, não tendo um livro sagrado, pode-se escolher um autor (que pode ser autor de tantos livros). O curioso nisto tudo é fato de que os grandes autores nacionais não se parecem com seus povos. Esta observação é de Borges, em uma de suas aulas. Assim temos a Inglaterra escolhendo Shakespeare, quando sabemos que o bardo é o menos inglês dos escritores de lá. Sabemos que o inglês típico prefere o understatement – a economia nas explicações. O dramaturgo é um eloqüente, um exagerado nas suas metáforas – parecendo muito mais um italiano de anedota. Ou um judeu.
Assim como o tolerante e nada nacionalista Goethe na Alemanha e o doce Cervantes, escolhido exatamente por não representar a estupidez espanhola. Assim com Vitor Hugo é o antifrancês E o Martin Fierro na Argentina (se bem que hoje já temos Borges , que pensando bem, também não é o protótipo do argentino).Parece que a história destes países escolhe alguém que seja diferente de sua verdadeira imagem. Alguém que seja um antídoto contra seus próprios defeitos.
Digo tudo isso para chegar no torrão natal. Se fizermos uma especulação entre as mais brilhantes cabeças da nação sobre que grande autor seria o emblema e o apanágio da alma brasileira tenho certeza que ouviríamos a repetição, a principio tímida, de um nome:

_ Machado, alguém dirá.

E outros engrossarão o coro;

_ Sem dúvida, Machado. Machado.

Esta unanimidade em torno do nome do homem para quem a glória eleva e consola nos coloca no mesmo passo dos outros países citados, incorrendo no mesmo equívoco. Sócios da mesma farsa. Queríamos parecer Machado de Assis. Queríamos ter sua polida perspicácia, a sua posição social. Queríamos ser bem relacionados e andar de polainas e bengala por ente os casarões de Botafogo, espreitando a filha virgem de algum comendador. Mas, infelizmente, não somos assim.
Somos uma nação de apaixonados. De homens descompromissados com a razão. Nossa catedral são os estádios de futebol e as nossas sacristias são os fundos dos botecos analfabetos. Nosso estado natural é a tragédia – de preferência, embriagada. Só ali e na intimidade da copa de um bar pé-sujo (ou talvez no terreno baldio a meia – noite, vá lá) confessamos nossos amores, fraquezas e pusilanimidades. Os perversos e sonhadores brasileiros são tipos incontidos, e mesmo os mais comedidos, em determinado tempo deixam aflorar suas verdadeiras faces. Seja o canalha ou o pobre diabo, que mata e morre por amor.
Por isso o grande escritor nacional é Nelson Rodrigues, o homem que pos o brasileiro diante do espelho e, como se não bastasse, entre outras coisas reinventou por aqui o velho futebol. Vejam esta frase:

_ “Numa simples ginga de Didi, há toda uma nostalgia de gafieiras eternas.”

E mais essa, tirada do peito em julho de 62:

_ “ Amigos estamos atolados na mais brutal euforia. Ontem quando rompia a primeira estrela da tarde, o Brasil era proclamado bi-campeão do mundo. Foi um título que o escrete arrancou de suas rútilas entranhas. E, a partir da vitória, sumiram os imbecis e repito: não há mais idiotas neta terra. Súbito o brasileiro, do pé rapado ao grã-fino, do presidente ao contínuo, o brasileiro dizia eu, assume uma dimensão inesperada e gigantesca. O bêbado enfiado na sarjeta, com a cara enfiada no ralo, também é rei. Somos 75 milhões de Reis. Outrora o brasileiro era um inibido até para chupar chica-bom. Agora não. Cada um de nós foi revestido de uma vidência deslumbrante. Foi a vitória do homem brasileiro, ele sim o maior homem do mundo. Hoje o Brasil tem a potencialidade criadora de uma nação de Napoleões”.

O que nos falta é Nelson Rodrigues, o único Shakespeare da vida real.

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