segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Tem xinxim e acarajé

As férias de verão são o paraíso na terra, principalmente para os garotos que enfrentavam o importante rito de passagem da 2ª para a 3ª série do Primeiro Grau (hoje em dia a coisa toda é diferente). As ruas ainda não eram proibidas para as crianças e um piá em Curitiba podia ficar por aí, flanando, jogando bola, soltando pipa, brincando de esconde-esconde até o dia escurecer. “De noite volto pro lar, pra tomar banho e jantar”, sem a sombra opressora da lição de casa. Esta era a vida feliz do pequeno Sandro, no Campo Comprido, em 1989. Dentro de casa a diversão era o álbum de figurinhas, um livro da coleção vaga-lume ou um gibi e o inapelável futebol de botão contra o irmão, ou mesmo sozinho, ocasião em que o Atlético sempre ganhava. Na companhia da mãe muitas novelas das oito. Até o dia em que “naquele fevereiro, onde tudo para ele era primeiro” a Rede Globo programou um especial mostrando algo como os melhores momentos dos carnavais de anos anteriores.
Num certo momento, o garoto viu as baianas de verde e rosa, girando como um catavento, sobre aquele chão de esmeraldas. Viu Mussum com seu sorriso amigo e seu pandeiro malandro, viu Jamelão com seus famosos elásticos-mandinga fazendo tremer a central do Brasil em Lá maior, viu o Junior do Flamengo com uma asa de penas de pavão ao lado da cabeça calva de 25 metros do poeta mineiro Carlos Drumonnd de Andrade. Era a Estação Primeira de Mangueira na avenida e Sandro então sentiu “seu coração apertado, todo seu corpo tomado, uma alegria voltar”. Assim foi seu despertar fascinado para o carnaval do Rio. Em pouco tempo era o maior especialista em sambas-enredo do turno da manhã do Colégio Estadual do Paraná. Com o passar dos anos, se tornou um colecionador, tão ávido quanto cuidadoso, de tudo o que dizia respeito às escolas do Grupo Especial. Nelson Rodrigues repetia que o “menino está enterrado no homem, como um sapo de macumba”. Aquele dia em que do sofá de casa o garoto viajou para longe, para o “Reino das Palavras” de Itabira marcou pra sempre sua alma, e ajudaria a definir muito do que viria a acontecer no futuro.
Cartas na Rua – A Camisa pólo (do amarelo tradicional dos correios do Brasil) de mangas compridas arregaçadas até o cotovelo, cortada em diagonal no peito pela alça azul da sacola lembram uma camisa que o Boca Juniors usou durante pouco tempo nos anos quarenta:
_Esta camisa do Boca não emplacou, por que tinha a mesma idéia da camisa do River...
Camisas de futebol. Outro item que desperta o impetuoso colecionador disfarçado no uniforme de carteiro. Como todo bom colecionador tem uma perspectiva peculiar sobre o valor relativo das coisas. Acha justo pagar mais de cem reais numa camisa original da Tuna Luso de Belém, da década de oitenta. Mas mede cada centavo do salário de funcionário concursado dos Correios e Telégrafos quando o assunto é de menor importância como a própria alimentação. Ajuda nisso o fato de ser vegetariano há quase uma década. Os alimentos naturais e os queijos além de mais baratos, mantem vivo o homem de um metro e setenta e poucos e ativa a cabeça, em cujo topo já vão rareando os fios louros dos cabelos. Como o equilíbrio é uma das marcas de sua personalidade, ele procura compensar a ainda incipiente calvície cultivando a barba ruiva e uma longa melena, ideal para balançar enquanto Brian May toca o trecho heavy metal de Bohemian Rapshody (musica preferida do Queen, sua banda preferida).
Atualmente, é o responsável pela organização e entrega das correspondências e encomendas nas residências numa área do bairro Batel, nas cercanias da praça do Japão. Um trabalho que exige além de grande esforço físico, uma capacidade de organização e memória. Coisa pouca para quem sabe o samba do Estácio, campeão do carnaval de 75 de cor. Pior era o tempo em que tinha o centro como sua jurisdição. A quantidade enorme de encomendas triplicava o peso da mochila. Era difícil, mas pelos menos não tinha cachorro”, deixando claro outra vez a idéia compensatória. Todos os fins-de tarde, (quer dizer quase todos, pois nos meses em que o Brasil não programa um feriado nacional ele usa uma prerrogativa da função e tira uma tarde livre a pretexto de resolver problemas de saúde, ou seja; tirar a tarde para brincar com o brincar com o filho pequeno) ele tira o uniforme de trabalho, dobra e coloca na grande mochila de montanhista, companheira inseparável das noites. Acostumado a carregar um peso extra, nos dias de folga sente a nostalgia de carregar um fardo. Pega também um sanduíche de pão com queijo ou uma fruta e se manda apressado para a faculdade. Chega pontualmente atrasado todos os dias. O atraso de 15 minutos é a sua marca. Curiosamente na única outra vez em que marcamos um horário para nos encontrarmos o mesmo atraso de 15 minutos se repetiu, ainda que, fosse um fim de semana, nas férias.
Assiste às aulas com atenção e com interessado bom humor, a não ser que esteja dando uma de suas longas cochiladas. Num maniqueísmo muito particular costuma elencar todas as coisas entre o céu e a terra em duas categorias bem distintas. As belas mulheres, uma boa noticia, um gol do atlético, um samba do cartola ou um bom vinho são definidos com um “show de bola”. Qualquer injustiça, uma cerveja quente, o noticiário político brasileiro, eventuais derrotas rubro-negras e principalmente as grosserias e boutades que os professores e colegas cometem merecem a reprimenda do seu bordão característico:
_ Que Absurdo....
Tente falar esta frase numa roda de cavalheiros que tenham entre 25 e 50 anos:
_ “Já fizeram outra vez a menina deitar na grama. É isso aí. gente fina: futebol samba, loteria é a alegria do meu Brasil - sil – sil....”
Era assim que o falecido locutor de rádio, Lombardi Junior começava a narração das milhares de partidas de futebol que ele transmitiu pela Radio Clube Paranaense nas décadas de 70, 80, 90 . Existe em Curitiba um estranho sindicato que se reconhece através da repetição desta senha, assim como a maçonaria possui todo um arsenal de símbolos que identifica fica um de seus membros diante de um confrade. A pessoa que conhece a frase só pode ser um nostálgico de memória privilegiada, morador da cidade na década de 80 , ouvinte de rádio e com interesse psicótico por futebol profissional. Assim é também Sandro Michaelev, “como se fala, se escreve” rima prática e sonora, usada desde muito para explicar o sobrenome de origem polonesa. A personalidade compactamente formada.
Um amor em Minas – Mas faltava ao romântico garoto do Campo Comprido a dimensão trágica de um grande amor. Ah, o amor essa coisa que a gente não entende iaiá... Não foi na Bahia, nem nas festinhas americanas, nem nas andanças pelo centro de Curitiba, nos sebos ou na sinuca do Omar shopping que o amor sorriu para Sandro.
Sua história de amor é improvável nestes nossos dias de relacionamentos íntimos instantâneos.Tudo aquilo que demorava dias, meses, com as missivas ou flertes da vida real, virou coisa de segundos. É o amor nos tempos do MSN como diz Xico Sá. Tudo muito rápido, espécie de miojo sentimental, emoções baratas, 3,5 minutos, ferveu, e ... pronto!
Para Sandro não. Ele sempre acreditou no amor verdadeiro, maior que a vida e a morte.
Enquanto remoia as agruras de sua solidão pós-adolescente, Sandro viu um primo aparecer por aqui com uma namorada mineira. Muito simpática , ficou sensibilizada ao ver um rapaz de talento e virtude tão só, que resolveu intervir. Deu a Sandro o telefone de uma amiga em Minas e a amiga o telefone do sambista polaco. Os números mágicos quedaquele DDD foram as dezenas da loteria do amor. Uma paixão ao primeiro inter-urbano. As conversas foram ficando cada vez maiores e mais gostosas, na mesma medida em que crescia a conta da Telepar. Pensou no poeta que foi enredo da Mangueira, naquele dia especial de 87 :
...quer ir pra Minas? Minas não há mais. E agora Sandro Michaelev, ?
Ele foi. E conheceu o amor. Em pouco tempo estava lá, de vez, transferido pelos correios para Juiz de Fora. Foi um tempo bonito, do amor e das aventuras nas serras e matas mineiras. O tempo das entradas e das bandeiras. Sacralizaram o casamento numa linda cerimônia pagã com fogo, vinhos rosas e luar. Eternizaram seu amor com o nascimento do pequeno Michaelev.
Acontece que Juiz de Fora tinha muitas ladeiras, muitos cariocas caboclos e não tinha o Atlético. O velho atlético dos álbuns de figurinhas, das camisas da Fedatto, do futebol de botão com o irmão o Atlético. Já era hora de voltar.
O pedido de transferência foi finalmente aceito pela direção dos correios.
Mais difícil seria convencer a bem amada a se mudar de mala cuia e prole para a distante Curitiba.
Padre Vieira em uma de seus mais inspirados sermões define a Holanda como “um frio e alagado inferno”. Pois o epíteto veste Curitiba muito bem, obrigada. À sombra destes pinheirais, as pessoas são distantes e de muito siso, as manhãs são pintadas de branco pelas geadas e o céu é cinza. A proverbial desconfiança mineira foi vencida e a família Michaelev aportava completa em Curitiba. O eterno retorno. O Atlético já era campeão brasileiro, a esperança havia vencido o medo e Lula subiu a rampa do planalto. Desde então a família Michaelev tem vivido feliz, o bebe crescendo, no mesmo velho bairro em que o pai cresceu. Ela atriz, ele funcionário (entre todas as outras virtudes) vão enfrenta a crise e vivendo e bebendo um vinho e engolindo sapos pelo caminho, e brigando e vão se amando -que também sem um carinho ninguém segura o rojão - e botando a vida pra frente num “ absurdo show de bola”.

Um comentário:

MM disse...

Lindo Polaco, lindo!