sexta-feira, 2 de novembro de 2007

A MOEDA VIROU

A profecia de Saldanha se confirma e o poder muda de mãos num Atletiba familiar


“O Atlético, facilmente, está entre os 10 mais”. A profecia escrita no Jornal do Brasil em Setembro de 1987 colocava o Clube Atlético Paranaense na vanguarda do futebol brasileiro. Quem antevia este futuro auspicioso era João Saldanha, jornalista e ex-técnico da seleção brasileira. Ele admitia neste artigo, com algum orgulho, que o Atlético fora o primeiro time de seu coração. A família Saldanha escolheu a calma Curitiba para se refugiar nos conturbados anos 20. O pai de João foi um dos mais importantes quadros maragatos da revolução federalista e, perseguido, saiu com a família pelo país. O pequeno João despertou seu interesse por futebol acompanhando um time que acabara de ser fundado e tinha a sede muito perto de sua casa - na região conhecida como “baixada do Água Verde”. Sessenta anos depois, Saldanha deve ter se lembrado destes tempos ao arriscar o destemido vaticínio.
Tamanho otimismo se justificava. O jornalista, fora recebido no aeroporto em uma manhã ensolarada de primavera com todas as honras de cavalheiro “Boca Maldita” da qual era membro honorário pelo próprio Anfrisio Siqueira (presidente da confraria) e um comitê de outros cavaleiros atleticanos. O motivo da viagem era uma visita à recém inaugurada nova sede social do Clube Atlético Paranaense. Uma sede completa, com campos de treino, piscinas e tudo o que mandava o figurino da época.
Desde o final da 2ª Guerra Mundial quem vem de avião a Curitiba desembarca no Aeroporto Afonso Pena na vizinha cidade de São José dos Pinhais. Curiosamente, a antiga estrada que conduzia ao campo de aviação de São José (onde se localizava a tal nova sede do atlético), Saldanha conhecia bem, pois também morara naquela região em seus tempos de jovem guerrilheiro.A área pertencente ao atual Aeroporto se constitui, em parte, de terrenos da Colônia Afonso Pena, ali implantada no início do século XX em homenagem ao sexto Presidente da República. Nessa ocasião, o Governo Federal desapropriou a área de uma fazenda, e dividiu-a em pequenas chácaras e ali assentou uma colônia de imigrantes poloneses e alemães e eslavos (incentivados pela política de colonização para a agricultura).
Entre as inúmeras famílias beneficiadas estava a família Cornelsen. O avô Amaro, primeiro do clã a chegar ao Brasil já possuía um Armazém de “secos e molhados” no centro de Curitiba (na região da atual Praça Osório). Ao seu filho Emilio coube o recebimento da escritura do lote destinado aos Cornelsen na beira do Rio Iguaçu.
Acontece que Emilio não teve pressa em ocupar o novo terreno e lá plantar mandioca e batata doce e criar galinhas como a maioria de seus vizinhos. Já o fisgara, de maneira inapelável a paixão pelo futebol e principalmente, pelo Coritiba Footbal Club – que já organizava seus times há quase uma década. O Clube era o ponto de encontro dos jovens imigrantes europeus. No Coritiba ele foi jogador, técnico e depois dirigente (na época chamados de paredros). E fez questão que os três filhos homens de sua prole ali se iniciassem no futebol Os dois mais velhos Alcyr e Aryon jogaram e foram campeões no Coritiba Foot Ball Club. Alcyr pendurou as chuteiras ao abraçar a carreira de médico e passou a ser apenas um torcedor. Já Aryon permaneceu sempre ligado ao futebol, ao mesmo tempo em que mantinha famoso escritório de advocacia na cidade, fazendo “de tudo um pouco” no Clube até chegar a presidência em 1958.
O terceiro irmão, Airton, (ou simplesmente Lolô) se desgarrou por conta de uma briga com o então presidente do Clube, o Major Couto Pereira, num baile de carnaval. Foi jogar no rival Atlético, onde se destacou como atleta campeão em 1945 . Se tornou um de seus torcedores símbolo -enquanto arrebanhava fama internacional como arquiteto e urbanista. Aryon na presidência do Coritiba deu inicio ao plano de construção do novo estádio alviverde. Anos mais tarde, procurando viabilizar a onerosa obra criou uma espécie de loteria privada. Chamada de Cori-Ação, causou furor em todo o Estado. Funcionava no clássico esquema dos bingos, com sorteios auditados e transmitidos pelo Rádio, e pagava premio vultosos. A loteria foi o canal para a transformação do acanhado Estádio Belfort Duarte no “gigante de concreto armado” do Alto da Glória.
No ano de 1963, Emilio Cornelsen faleceu deixando a área em São José dos Pinhais de herança aos filhos. O empreendedor Aryon comprou a parte dos irmãos e alguns lotes vizinhos. No final do ano era proprietário de uma área de 400 mil m².
Um ano depois, solicitou a seu irmão Airton, o “Lolô” o projeto da primeira Vila Olímpica brasileira em forma de clube social. O Complexo seria construído no terreno de 16 alqueires em São José e pela idéia de seu criador faria parte da estrutura esportiva do Coritiba Football Club. A vila comportaria, segundo a exposição anexa ao projeto; “cinco campos de futebol construídos: um com medidas oficiais e drenagem, tendo como característica principal a grama importada do Uruguai; e dois de pelada - um deles com areia. A série de campos foi completada com outros dois com 40 x 60, com piso de grama, mas que se destinava aos sócios. Um outro campo seria construído e serviria para treinamentos dos profissionais, com duas arquibancadas em volta do gramado, uma pista de atletismo e caixas para salto. Tudo de acordo com as normas exigidas pelo comitê do esporte olímpico. Canchas de basquete, stand para tiro ao alvo, arco e flecha, futebol de salão, vôlei, tênis, mini golfe, entre outros esportes, complementariam o conjunto da Vila Olímpica”.
Um dos objetivos do projeto era fazer com que a Vila Olímpica se tornasse auto-sustentável com o fluxo de turistas se resumia na: “ na construção de um hotel de categoria internacional, com 260 apartamentos de luxo e 50 suítes. Posteriormente, novos desejos foram incrementados ao projeto: a construção de um restaurante de 70m de altura, tendo um piso giratório e um cinema ao ar livre para 1.300 espectadores”.
A partir de 1966, o PAVOC – Parque Aquático Vila Olímpica Cornelsen se tornou uma referência curitibana. Muito por conta da ousadia do projeto arquitetônico de Lolô, (que entre outras realizações é responsável pelo autódromo do Estoril em Portugal) como pela intensidade do costume de se freqüentar clubes sociais na cidade naqueles anos..
Esta era a Vila Olímpica que tanto impressionou João Saldanha em setembro de 1987. Um pouco mais de dez anos atrás ela havia mudado de mãos, passando do mais do abnegado e realizador coritibano ao patrimônio do arqui-rival Atlético Paranaense numa ação rocambolesca, digna da eterna “guerra fria” entre coxas e atleticanos.
Boca Maldita - Aryon Cornelsen conta que “fez de tudo” de tudo para que o Coritiba recebesse o Clube Olímpico, chegando até a planejar a venda dos carnês e das cotas para associados. De seu apartamento no Alto da Glória, repleto de fotos dos tempos gloriosos, relembra com um misto de saudade e magoa aquela situação:
_ Eram 100 metros na Avenida das torres, de ponte a ponte... Ofereci ao coritiba 20.000 m² de graça, mais as mensalidades dos sócios e todo o parque construído em troca da venda dos 50 mil primeiros títulos patrimoniais, revela, com a voz embargada.
A situação que presidia a política do clube, entretanto, não quis bancar a idéia. O jornalista Carneiro Neto arrisca uma opinião: ­_ A “turma” do Evangelino (ex-presidente do Coritiba e o dirigente esportivo mais vitorioso do Estado) foi contra exatamente por que era uma ótima idéia. Eles achavam que o Aryon ia ganhar muito dinheiro...
E de fato, no tempo das campanhas e loterias, Aryon arrecadou somas expressivas. Chegou a ter no final dos anos 60, de um helicóptero particular “igual ao do filme do Roberto Carlos”, diz enquanto aponta a foto do aparelho numa velha capa de jornal, pendurada na parede.
Mas a construção e manutenção do PAVOC, seu grande sonho e no qual colocou todas as forças e patrimônio, sem a parceria de um Clube, acabou sendo a ruína de Aryon:
_Tive que requere minha insolvência, perdi o meu patrimônio e fui expulso do conselho do Coritiba, conta encontra mostra o famoso helicóptero.
Com um elefante branco, faminto, em mãos, não restou a Aryon (antes ofereceu ao Clube Concórdia, que negou) levar a mesma proposta ao Atlético Paranaense de seu irmão Lolô. O Atlético topou na hora.
O contrato firmado com o Atlético era um pouco diferente daquele negado pelo Coritiba. Aryon conta: “Ao Atlético eu não ofereci de graça, queria os 50 mil títulos e as mensalidades. Então o atlético impôs uma clausula, 10 anos de prazo, sendo o negócio bem ou mal sucedido...”
Esta clausula foi a ruína de Aryon e seu projeto. A necessidade fez o experiente advogado aceitar as imposições leoninas, acreditando na boa-fé dos diretores do Atlético (pessoas integrantes do Governo Estadual em alto escalão e proeminentes figuras da sociedade) e nas boas vendas dos títulos durante o primeiro verão (aproximadamente 16 mil).
Ocorre que o teor do contrato vazou e logo chegou ao conhecimento da Boca Maldita e seus cavaleiros, maioria esmagadora de atleticanos. Ocorreu então o famoso “boicote do Senadinho” como rememora Carneiro Neto:
_ A turma do “Senadinho” e da “Boca”, liderados pelo Anfrisio Siqueira, depois de descobrir a tal clausula resolveu sabotar o projeto. Todos aos atleticanos e os cavaleiros da boca estavam proibidos de comprar títulos. Anfrisio criou até um slogan: “Quem comprou não pague, quem não comprou não compre, pois o parque já é nosso”.
E durante nove anos as vendas congelaram. O diretor financeiro do Atlético, responsável pelas vendas dos títulos, Rodolfo Moser, é quem se lembra da força da conspiração:
_ De 16 mil no primeiro ano passou para mil no segundo. E depois ninguém mais comprava. Houve até uma orientação, tácita, para que nós desenconselhassemos a compra...
Aryon não conseguiu arrecadar o necessário para viabilizar o projeto, e terminado o tempo de contrato, o complexo acabou indo inteiramente de graça para o Atlético.
O Atlético Paranaense, de sua parte nunca soube administra o espaço conseguido da mão beijada do velho inimigo. Algumas singelas atividades sociais, a utilização dos gramados pelas categorias de base e pedalinhos para casais suburbanos apaixonados. Na verdade nesta época o Atlético enfrentava uma de suas inúmeras crises político-administrativas.
Lolô Cornelsen diz que do projeto inicial restara pouco, “a intenção era criar um Centro de Treinamento para formação de jogadores, muito antes do futebol profissional virar este negócio milionário”.
O acordo do Atlético com Aryon Cornelsen data de 73. A posse atleticana fez-se em 83. O patrimônio era pouco usado, e segundo Moser “servia mais para impressionar investidores e visitantes” -como João Saldanha - na tentativa de melhorar a imagem do Clube. Imagem que foi gradativamente se desgastando até que em 1995 um grupo de conselheiros resolveu fazer uma “inconfidência”. Liderados pelo empresário Mario Celso Petraglia promoveram verdadeira revolução na estrutura e na administração atleticana. Sempre muito intimo do poder, Petraglia já de olho no terreno do antigo hotel “Estância João XXIII” (o bairro do Umbará, em Curitiba) e com o ambicioso projeto da Arena na gaveta , aproveitou –se das grandes inundações acontecidas em Curitiba no ano de 96 e propôs uma composição com o Governo Estadual. O Estado desapropriaria a área do PAVOC para abertura de um canal extravasor do rio Iguaçu pagando aos proprietários a devida indenização. Não foi a única desapropriação da área, mais de cem decretos foram assinados em maio de 1996 pelo Governador em exercício, deputado (e ex-presidente rubro-negro) Aníbal Khury. O valor da indenização é que foi efetivamente maior do que os demais. A quantia causou, à época, indignação em setores da imprensa e resultou num processo (arquivado) de crime de responsabilidade contra Khury e o Governador Jaime Lerner. Com a soma arrecadada o Atlético Paranaense pode enfim levar a cabo seus planos de reestruturação e crescimento. Viabilizou a construção da Arena da baixada (do Água Verde) e adquiriu a terreno e instalações do hotel, onde instalou o seu Centro de Treinamento Alfredo Gottardi - as jóias da coroa da monarquia atleticana. Lolô lembra que o episódio é a grande magoa da vida de Aryon: _ “Ele sofre muito com isso. Sempre foi contra o Atlético, mas arrumou a nossa vida”
Arena que no mês de junho de 2007 foi indicada como o Estádio Paranaense postulante a abrigar uma sub-sede da Copa do Mundo de 2014, em que o Brasil é a sede confirmada. A indicação da Arena foi, coincidentemente, assinada por Orlando Pessutti, também governador em exercício e também notoriamente atleticano. Ao final de todos estes anos a profecia de João Saldanha se mostrou certeira. O PAVOC dado de presente por um co-irmão, foi a alavanca que impulsionou o Atlético na vanguarda do cenário brasileiro. Mesmo que pelas linhas tortas por onde passam a política e o esporte paranaenses.

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