sexta-feira, 9 de novembro de 2007

O Pato Macho

Não me perguntaram, mas eu vou falar duas palavras (no Brasil duas palavras são duas mil) sobre o filme do momento. Momento que, talvez, já tenha passado - como ocorre com as piadas que ficam cada vez menos engraçadas com a repetição. Assim como a morte da princesa Diana foi o auge da espetacularização da cobertura jornalística, o corsário lançamento de Tropa de Elite deflagrou a mais intensa pinimba político-filosófico da história de nossos botecos (onde mora o calix bento) e da internet (onde reinam os chatos abstêmios). Fico imaginando como Nelson Rodrigues olharia para a internet. Ele tão preocupado com a proliferação da voz e da vez dos idiotas em seu tempo, “nos bons tempos o idiota era o pobre diabo, ciente da sua condição e andava pelos cantos sem dar um pio...” (cabe o alerta de que este texto está prenhe de citações, todas feitas com a gasta e pouco confiável memória). Qualquer idiota pode falar e escrever pelos cotovelos, sobre qualquer assunto de que não saiba nada e pode ter a pretensão de ser levado a sério, e o pior: se levar a sério. Mais ou menos o que estou fazendo agora.
Isto Posto, devo dizer que sobrou muito pouco suco para espremer. O gênio exilado de Ivan Lessa não entendeu a reação exagerada dos que fumaram um baseadinho e foram ver o filme. Sentiu falta das “vísceras expostas e do garrote vil e outras formas de torta a que estamos acostumados vendo os filmes americanos”. Diogo Mainardi, por sua vez, propôs a raspagem das sobrancelhas do protagonista. Numa teoria canalhamente irônica associa a canastrice de nossos atores à dos nossos políticos. O povo, domesticado por uma, aceita melhor a outra. Boa teoria que, todavia, não se aplica ao filme, pois o protagonista é muito bom ator. E no mais uma cachoeira de opiniões, artigos, entrevistas que acabaram por criar blocos bem definidos e antagônicos – como as torcidas da Marlene e da Emilinha Borba nos bons tempos. Pra ficarmos só em dois grupos, bem identificáveis, temos de um lado os lucianohuquistas –que estão cansados e querem um capitão nascimento em cada esquina para proteger a prataria. (Me ocorreu agora um conselho ao apresentador: Porque você “não vai de táxi, ce sabe” da outra vez ?). Do outro os intelectuais de esquerda – linha Butantã USP- além de toda a esquerda festiva- banda larga espalhada pelo país , que viram golpe, fascismo, apologia a violência e mensagem política de extrema direita e de limpeza social na película. Ora, um filme é um filme. Assim como “uma rosa é uma rosa é uma rosa ....”
Deixo claro que como um espectador médio, gostei de assistir o filme. Da edição ágil, do bom roteiro e da bela fotografia do lado escuro do Rio – cidade onde morei por um importante período. Desta experiência restou um sentimento que me faz concordar com os que viram uma glamourização da tropa. O BOPE, que eu me lembre, era muito mais truculento e menos eficiente do que o apresentado. Parece-me que o melhor retrato audiovisual de sua atuação sejam mesmo a trágica trapalhada no seqüestro do ônibus 174(outro filme do diretor Padilha) e a angustia do capitão Pimentel ( que inspirou o papel do capitão Nascimento) no clássico documentário Noticias de uma Guerra Particular. Digo, porém, que nada tenho contra o recurso dramático (no sentido teatral) da utilização ficcional do ponto de vista da policia. Um filme é um filme. O fato de este ter aberto um espaço para saudáveis (e enfadonhas) discussões trouxe a tona - somadas e divididas as opiniões, noves fora – um farto pedaço da nossa tragédia (a brasileira). De repente me vi envolvido pela angustiante depressão dos meus tempos de juventude. Tempos em que freqüentava os bancos da faculdade de Direito e trabalhava na Penitenciária Central do Estado. As penitenciárias, para quem não sabe, são aquelas masmorras medievais, que servem de tapete para a sociedade civil . Para debaizxo deste se varre o lixo humano que esta fora do “mundo corporativo” ( não é Max Gehringuer?), através de processo inquisitoriais. Para isso usa um processo de seletização do inimigo, criado pela legislação republicana, difundido e manipulado pelos donos da informação e que tem como braço armado o Sistema Penal. Sistema que escolheu como inimigo publico nº. 1(é o mesmo até hoje, mas a coisa sempre pode mudar...) “o bisneto de escravo entre 16 e 26 anos, que vive em favelas, não sabe ler, consome drogas ou vive delas, é arrogante agressivo e não mostra sinais de resignação”. São eles que querem nos matar e nos roubar e para combate-los estão aí o Bope, a Companhia Brasileira do Cartucho, as milícias de segurança privada e o Poder Judiciário.
Eu era um dos funcionários desta estrutura até que um dia, na hora do cafezinho, tive uma sincope delirante. Sai pela porta da frente sem olhar para trás e nunca mais voltei. Comigo iam apenas os proverbiais pequenos diabos da consciência nos desenhos animados, cada qual em seu respectivo ombro. Caminhei de Piraquara até Santa Felicidade. No começo o diabinho da direita pediu a palavra:
_ “Ondas de desilusão. Não haverá mudança social. A fé é a crença ingênua na ocorrência do improvável. Algo Funciona? Nada funciona O progresso, a tecnologia e a tolerância zero irão nos catapultar para um mundo melhor”...
Como percebendo a minha loucura crescente ele continuava: ... “ devemos para de tentar contestar o Sistema. O capitalismo é o grande canal totalitário que subjuga tudo que o toca e se alimenta desta rebelião. Qualquer forma de combate é absorvida e vendida aos ex-rebeldes em quatro vezes no cartão... A revolta faz parte da lógica interna que faz a roda girar , sempre para o mesmo lado. O capitalismo é o fim da história”
Fukuyama foi demais para o diabo da esquerda, que até então estava quieto, estava tomando cerveja. Ele começou a expor; “_O contrato social com o Estado, o monopólio da violência são uma grande farsa . Eles usam a a linguagem da punição, do castigo – que as pessoas entendem desde criança – quando na verdade eles promovem promove é uma vingança. Vingança (que Nietzche dizia ser um sentimento que herdamos da alma das tarântulas) como instrumento de seleção social”.
Depois de um grande gole o pequeno cão, de camisa vermelha, continuou:
_ existe um grupo reduzido, que vive confortavelmente e adota a aparência de princípios sociais ( como igualdade, liberdade e justiça) que nunca se confirmam na realidade. Como este grupo finge que não vê o que acontece com o resto das pessoas, do planeta? Eles imaginam que estão fazendo a sua parte, compondo o “nosso velho quadro social”. Ah, então tá bom... Quando todos acreditam que estão realizando (enfrentado a crise com uma propininha aqui, uma sonegaçãozinha ali, mas no mais dentro da lei) e mesmo assim o resultado é uma realidade caótica, injusta e genocida só posso lembrar da indagação do Dr. Freud: _...e quem nos salvará da bondade dos bons?”. E tem mais uma, o Brasil não planta coca. Os comandos das favelas não tem navio ou helicóptero. Quem traz essa parada para cá?”
Muitos anos se passaram daquele dia. Os meus dois amigos continuaram aparecendo, de quando em quando. Eu é que perdi algumas crenças e ganhei outras. Acabei por concluir que o Estado, a Policia, os delitos e as penas não existem. São invenções que servem pra manter a estrutura “assim como era no principio, agora e para sempre”. Neste estrutura todos trabalhamos naquilo que Darci Ribeiro chamava de ”moinhos de gastar gente”. Só que no mundo espetacular do consumo em massa O Estado, por intermédio da policia, tenta se revestir de legitimidade para manter viva sua capacidade matadora e vingativa.. Finge que não é com ele. “A culpa é do garotão que pegou a bucha de pó” dizem uns. È um dos maiores truques do diabo é fingir que não existe, diz a sabedoria popular.
Os inimigos (chamados em horário nobre de bandidos) também desempenham sua função. Emprestam compulsoriamente seus corpos à brutalização para um espetáculo de violência sem fim, que garanta eternamente a estética da escravidão. Até o dia “em que o morro descer e não for carnaval”, como no samba . Não parece claro que devemos não só compartilhar os bens e as riquezas nelas produzidas, mas aprender a conviver com os desconfortos nela gerados?
Não, não parece. De tudo o que foi dito sobre o Tropa de Elite, que me fez voltar proustianamente aos meus conflitos do passado, a única coisa que não me assustou foi a reação da “opinião publica” que, apavorada e com sangue nos olhos, cobra resultados e abre mão de direitos fundamentais arduamente conquistados. E aplaude solenemente aplaude o genocídio oficial praticado, na base do “bandido bom, é o bandido morto”. À opinião publica não interessa que o pato seja macho. Ela precisa dos ovos.

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