quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A COLÔMBIA NÃO É PARA PRINCIPIANTES

No dia em que poderiam ter me matado – o que acabou não se confirmando – encontrei com Don Javier Arena numa redação, num subúrbio de Bogotá. Ele do alto de sua elegância eu daqui mesmo, reconhecemo-nos recíprocas afinidades, mesmo ele num seguro outono e eu no flagrante labirinto, qual general de estrela morta. Com experiência de jornalista decano da boa imprensa de lá, notou que minha aflição nascia da dificuldade em começar o texto que deveria escrever sobre minha visita ao país – o que acabou se confirmando. Então contou-me uma conversa, na sala de redação da agência Prensa Latina, em uma tarde dos anos 60s, com Gabriel Garcia Marquez, seu diretor há época. Arena quis saber como ele conseguia inspiração para as páginas fantásticas que criava. Na resposta, uma verdade que resume o pais contraditório:
– Na Colômbia, a realidade é mais inacreditável que qualquer ficção...
Melhor maneira de entender a “surrealidade” – facil para nós, convenhamos - de um pais que diz querer a paz e vive em guerra permanente há décadas, de um povo cordial e alegre , ao mesmo tão violento desconfiado, de como o pais que abastece o mundo de frutas e flores é também o líder do mercado mundial de drogas ilícitas .
Para se tentar entender todas as complexidades deste realismo fantástico da política colombiana, é preciso primeiro investigar as raízes históricas que produziram o cenário do conflito armado permanente ( que vai sofrendo finalmente a sua mais íngreme distensão).
Ao contrário da violência urbana brasileira, que tem matiz notadamente social (e – por que não dizer? – racial), a origem da violência colombiana é política. Nasceu a partir da insurgência de grupos armados que rebentaram no país em oposição ao federalismo de um governo central que nunca disse há que veio. O poder centralizado nunca foi compromissado com as complicadas idiossincrasias de cada região de um pais que reúne o Caribe, uma costa no Oceano Pacifico, a cordilheira dos Andes, muitas aldeias camponesas e grandes metrópoles num só território.
Isso se não se quiser ir mais longe, buscando na brutal história colonial da Colômbia uma explicação sociológica. Nada parecido com as “três raças tristes” que formaram o povo brasileiro. Pode-se dizer que a cultura colombiana se fundou no encontro de nativos guerreiros com exploradores violentos com sede de ouro, sangue, sal e esmeraldas.
Um seminal estudo sobre o caso da violência na Colômbia, assinado pelos historiadores Gonzalo Sanchez e Donny Merteens, tenta investigar a gênese moderna do problema apresentando aquela que os autores chamam de “a geração da violência” – a que viveu o período de 1945 e 1964.
Nesses tempos de cólera social, irrompeu, em meio a um turbulento cenário político, uma forca armada camponesa – os bandoleros (que guardam muita semelhança com a experiência do cangaço brasileiro). O assalto, a pilhagem e o assassinato apareciam como ferramentas políticas e se tornariam típicos na paisagem colombiana.
Essa forma de revolta popular, que teve no bandoleiro Desquite o seu avatar (mais ou menos o equivalente a Lampião no imaginário colombiano), foi a primeira grande demonstração do porvir violento que esperava os caminhos do país nos próximos anos.
Por ocasião da morte do mitológico bandido, o poeta Gonzalo Arango sustentava que ele [...] “era un malhechor, un poeta de la muerte: hacía del crimen una de las bellas artes. Mataba. Se desquitaba. Lo mataron [...] Lo mataron porque era un bandido y tenía que morir. Merecía morir sin duda, pero no más que los bandidos del poder”. Esse ainda parece ser um sentimento difuso no país. Dizia-se, na época, que se a situação não se alterasse apareceriam outros “desquites”.
A grande alternativa de mudança poderia ter sido ascensão ao poder de Jorge Eliecer Gaitan, caudilho populista que mesclava o paternalismo de um Vargas com a fúria oratória de um Carlos Lacerda. Gaitan poderia ter sido timoneiro de um renascimento democrático colombiano. Não foi. Caiu morto, assassinado a tiros no centro de Bogotá.
Já que falamos de Garcia Marquez, que está com o prestigio baixo em seu país depois de anos de exílio, sucesso e esquerda festiva, lembremos de outra história contada por ele. Agora na sua auto biografia, Viver para contar. Gabbo estaba há poucos quarteirões do lugar onde mataram Gaitán – mais prexcisamente a frente do bar El Gato Preto ( região com grandes salões de sinuca), dia 9 de abril de 1948. A guerra civil na Colômbia estava no forno desde a independência da Espanha. A paz armando-se era com virou bagunça com o garrote, após quatro governos consecutivos, do partido conservador não admitia perder o posto para os liberais. Gaitán. Idolatrado pelo povo hipnotizava o pais com seus discursos. Conta Gabriel Garcia que quando o mataram a tiros na calçada “o povo todo enlouqueceu de ódio”. Viraram bondes, lincharam um suspeito (e Gabriel lembra que poderia muito bem não ser o assassino, porque toda a sinfonia do linchamento foi comandada por um estranho homem de terno cinza, que ninguém conseguiu explicar quem era e podia estar desviando a atenção do verdadeiro suspeito) .O povo molhava os lenços no sangue para guardar de recordação. Até Fidel estava lá neste dia, um líder estudantil de vinte anos, participando de um congresso. Ele e Márquez, mais tarde se tornam amigos Só então ele acorda para o momento político:"Como você pode querer almoçar? Mataram Gaitán!"
A lacuna deixada por Gaitan foi preenchida com a formação de uma “frente nacional”, promiscuo acordo bipartidário que remete à “política do café com leite” da primeira república brasileira ou à subserviência da Arena e do MDB na época da ditadura militar. Os partidos Conservador e Liberal se alternavam no poder (eram os partidos do si e do si, señor) e dançavam conforme a salsa tocada pelos planos de expansão norte-americanos do pós-guerra.

FARC, FRANKENSTEIN E COCAÍNA

No início dos anos 60s, catalisadas pelo triunfo da revolução cubana e pelo sentimento universal de utopia revolucionária, apareceu no teatro político colombiano um novo protagonista. Uma forca armada, de orientação marxista, como tantas que brotavam na época por toda a América Latina. As táticas foquistas de guerrilha camponesa encontraram no revelo geopolítico do país (selvas, montanhas e instituições corruptas e desacreditadas) o habitat perfeito se reproduzir e crescer. Anos mais tarde, os focos guerrilheiros convergiram para a consolidação das Forças Armadas Revolucionárias da Colombiana (Farc).
O comando das forcas guerrilheiras unidas se ofereceu naturalmente a um homem fatal nesse contexto: o guerrilheiro Manuel Marulanda Velez, apelidado de Tirofijo, por conta de sua perícia invulgar como atirador. Marulanda era, segundo perfil apresentado na revista Semana (que trouxe o histórico furo do anúncio de sua morte na matéria de capa) como o “pai fundador, aquele que orientava a direção do grupo e o dono da última palavra”.
A guerrilha, que pode ter parecido legítima num primeiro momento, todavia se revelou cruel, sanguinária, incontrolável. O recrudescimento das Farc motivou um contragolpe surreal do governo instituído na Colômbia. O Estado, para combatê-las, legitimou a criação de movimentos armados privados, abrindo mão do monopólio da violência, expresso contrato social das repúblicas modernas.
Javier Arena define as contra-insurgências armadas paramilitares como “um Frankenstein colombiano que, como toda boa criatura da literatura de horror, um dia se voltaria contra o criador que lhe deu à luz”.
A institucionalização do paramilitarismo é tão complicada de entender, principalmente para os brasileiros, acostumados com a surobocracia estatal brasileira, como o hábito de comer caldo de costela com batatas e ovos mexidos no café da manha (para o mal no caso das milícias e para o bem no caso dos espetaculares desayunos).
Tudo isso acontecia num momento internacional de fim do romantismo utópico sessentista e uma nova ascensão de um niilismo capitalista no Ocidente. O LSD e a maconha do flower power foram substituídos pela cocaína nos embalos dos sábados setentistas. E o cultivo da coca é perfeito para as férteis terras colombianas. Assim como a sua comercialização em nível internacional caía como um terno de alfaiate nas mãos de grupos armados de hierarquia rígida e métodos violentos como os que se verificam na Colômbia desde a geração dos bandoleros.
Os cartéis de Meddellin e Cali em pouco tempo assumiram a vanguarda do tráfico internacional de entorpecentes. As inacreditáveis quantias de dinheiro envolvidas foram o combustível explosivo que movimentou um período trágico de violência política. Durante um longo tempo, o dinheiro da droga financiou a guerra de “todos contra todos” no cenário colombiano. Tanto as Farc quanto os paramilitares e também o governo central eram bancados pelo inesgotável rendimento da venda do perico, cujo principal comprador eram (e ainda são) os EUA – maior e mais fiel parceiro comercial colombiano.
Foi um período de assassinatos à traição, atentados, seqüestros políticos e extorsivos que só começou a mudar de face quando a inteligência dos “think tanks” americanos escolheram o traficante de drogas sul-americano como o inimigo da vez, no fim dos anos 80s (antes, era o sudeste asiático; hoje, os árabes muçulmanos; amanhã, quem será?). Os cartéis foram desmantelados, seus barões presos ou mortos, mas o negócio não acabou. Mudou de mãos: passou a ser conduzido exatamente pelas Farc e pelos grupos paramilitares.
No final dos anos 90s, pretendeu-se, pela vez primeira, um acordo de paz entre guerrilha e o Estado colombiano. A pretensa bandeira branca que se pretendia desfraldar nos encontros na cidade de Calguan se revelou uma farsa. Na verdade, simulacro engendrado pelas Farc, que deixaram o governo do então presidente com um solene “pincel na mão”. A guerrilha rejuvenesceu, o que impulsionou uma reação de direita responsável pela coalizão que levou ao poder o presidente Álvaro Uribe, com uma proposta política clara de aniquilamento das Farc e desmobilização dos grupos armados paramilitares. Administração que hoje é referendada por expressivos números de aprovação popular.
Este é um raso e pretensioso panorama da política da Colômbia desde meados do século XX. Neste caudalosamente chuvoso inverno de 2008, a política colombiana está enfrentando um momento efervescente e crucial.

TIROFIJO ESTÁ MORTO

O anúncio da morte de Manuel Marulanda, aliás, Tirofijo, também teve suas cores surreais. Não se deu com um pronunciamento oficial ou uma entrevista coletiva. Em uma entrevista à revista Semana, o ministro de Defesa “deixou escapar” pelo meio da conversa que o chefe guerrilheiro estava morto. A repórter se assustou e perguntou:
– É verdade? Posso dar o titulo desta matéria como “Tirofijo está morto?”
O ministro, Manuel dos Santos, confirmou:
– Marulanda está no inferno para onde vão todos os criminosos.
Parece que Santos quase se “esquecera” de contar ao país a informação que detinha e que dias depois foi confirmada pelo secretariado das Farc. Como se a alma que descia ao inferno não fosse a de um dos protagonistas de toda a situação colombiana nos últimos 60 anos.
Pelas calles e carreras de Bogotá, enquanto se toma um espetacular “café tinto”, ouvimos esta constatação emblematicamente reveladora: “Só mesmo na Colômbia é possível que um assassino como Tirofijo morra de causas naturais enquanto inúmeros homens de paz morreram assassinados pelas costas”. Marulanda foi um homem peculiar, um camponês que passou mais de 40 anos conflagrado na selva (nunca conheceu Bogotá, por exemplo), causou morte e destruição e nunca conseguiu seu objetivo de tomada do poder .
A morte do guerrilheiro mais velho do mundo na ativa foi apenas mais um dos severos golpes que a guerrilha colombiana sofreu nos últimos tempos, em especial neste ano.
Desde a ação das Forças Armadas Colombianas em território equatoriano que mataram Raul Reyes, herdeiro natural do comando da guerrilha (e criaram um mal-parado incidente internacional), até a traição patrocinada pelo Estado que resultou na morte de outro importante guerrilheiro, Ivan Rios, percebe-se que a estrutura hierárquica das Farc está apodrecendo.
Muitos outros integrantes importantes se entregaram ou foram mortos, e pela primeira vez na historia da Colômbia – assim como costuma falar o presidente de um país vizinho – há um sentimento nacional de que o governo de Uribe e as Forças Armadas encurralaram as Farc.
Por outro lado, Uribe urdiu uma estratégia concreta e aparentemente efetiva de negociação e desmobilização do paramilitarismo, com acordos e deportações dos lideres dos movimentos armados. Se não fosse pouco, o Congresso Colombiano está envolvido até o pescoço num escândalo que a imprensa brasileira facilmente chamaria de “mar de lama”. Há 29 congressistas presos e outros tantos investigados por envolvimento com grupos paramilitares, a maioria esmagadora da base governista.
Um projeto de reforma política está em discussão no momento. Pretende-se coibir a possibilidade de posse dos suplentes dos políticos envolvidos com a “parapolitica”. Se aprovada a reforma, as cadeiras no Congresso que dão sustentação a Uribe ficariam vazias. O presidente perderia a maioria nas casas, o que representaria um entrave para a aprovação de projetos como o que vai propor um referendo popular para definir uma reforma constitucional que lhe permita um terceiro (e talvez um quarto) mandato.
Chama atenção a celeridade na condução dos julgamentos políticos que, por sua natureza extraordinária, não contemplam um duplo grau de jurisdição, princípio básico na maioria dos Estados de Direito modernos. Como já dito, trata-se de um pais que só os iniciados entendem.

A PALAVRA QUE NÃO TEM QUEM A ESCREVA

Muito da popularidade de Uribe, triunfalmente exortada pelos órgãos chapa-branca e ironizada pelos meios mais críticos, deve-se ao fato de ele ser um presidente que, bem ou mal, cumpre o que prometeu, algo raro para os políticos do continente. Prometeu o aniquilamento das Farc e o fim do paramilitarismo (com métodos pouco ortodoxos e corrupção na base aliada) e parece estar logrando êxito.
No entanto, paz é uma palavra que não se usa de parte a parte. Há um esgotamento visível do poder das Farc, homiziada em pontos remotos das fronteiras com Venezuela e Equador e cuja última grande carta na manga parece ser o seqüestro de Ingrid Bettancourt *.
Mas quem conhece a história do conflito sabe que nunca se deve subestimar o poder da guerrilha, agora sob nova direção. Os primeiros atos do novo comandante Alfonso Cano parecem mostrar que a intenção do grupo é a de que, se forem cair, cairão atirando.
Nota-se no contato com o povo colombiano um sentimento de fastio, cansaço de tanta turbulência e violência. Questionado sobre se num improvável cenário de paz, com a completa desmobilização dos paras e a rendição das Farc, uma democracia colombiana sem combates e sem inimigos não deixaria um vazio na alma do país, don Javier Arena responde: “Pode ser que sim, e aí teriam que encontrar outros inimigos para lutar. E nunca faltam inimigos quando se quer lutar”.
* Noticias de um Seqüestro
Muita água embaixo da ponte depois da conversa suburbana com Don Arenas. Já de volta ao torrão, onoticiário internacional conta a história da mirabolante ação militar, que teria aplicado o chapéu nas FARC . Cavalo de troa que libertou 15 seqüestrados do cárcere da selva de Guaviare, entre eles, Ingrid Bettancourt..
Libertação anunciada,no mesmo tom triunfalista pelo Ministro da Justiça colombiano , personagem singular - tão linha dura como o General Newton Cruz, tão vaidoso como o Roberto Justus. Idolatrado pela extrema-direita como um Maluf e influente como um Marinho (sua família é acionista principal da maior rede de TV e dos Jornalões do país). Santos se especializou em mostrar o pau (epa!!! ) depois de morta mais uma das cobras do ninho das FARC..
E o ano de 2008 tem sido terrível para a guerrilha colombiana. Morte dos três principais líderes, de casos de capitulação, traição e assassinato entre seus membros.. Como se fosse pouco, os guerrilheiros, que estão fisicamente encurralados na fronteira da Venezuela receberam outro golpe. Declaração de Hugo Chavez, temente pediu a rendição das FARC, classificando as de “anacrônica e injustificável”.
Sem Ingrid há poucas alternativas de negociação. Sem Chavez perdeu-se o o homizio das tropas. A situação está na base do “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Há ainda muitos seqüestrados, algumas centenas deles. Mas o “prendo e arrebento” do contubierno Uribe, já olha estas mortes como estatísticas positivas. A única alternativa das FARC parece ser morrer atirando. A pergunta é: quantos soldados vão ter estomago pra cair por esta causa. Causa que não faz sentido há muito tempo. As FARC são o ultimo sopro do século passado que ainda balança palmeiras nos hoje. Com a sua rendição, talvez o velho vinte possa dormir em paz, morto e enterrado.
Já no vvinte um, assim vai a Colômbia, um país encantador e paradoxal, com uma cultura diversificada e riquíssima e uma tradição de violência. Com indicadores positivos na economia (na medida do que pode ser positivo nas economias latino-americanas), mas, envolvido num conflito político intransponível. Uma nação ferida e, ao mesmo tempo, decidida a continuar lutando para enfrentar seu destino, tão colombianamente incrível como a historia de Cândida Erendira e sua avó desalmada.

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