quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A LONGO PRAZO, ESTAREMOS TODOS MORTOS














Torpor e decadência numa noite sem preliminares

No caso de meus encontros com a canadense é fácil diagnosticar que se trata de uma folie a deux clássica. A psiquiatria criminal assim chama o transtorno marcado pela cumplicidade incontrolável dos casais. Delinquir, fazer coisas que jamais fariam sozinhos. Retroalimentar a loucura um do outro. Explica também o fascínio dos velhos pactos de morte.

Em mim, se manifesta quando ela tá por perto. Nossos encontro se dão num mundo isolado, onde os outros quase não interessam e o torpor impera. Progressivamente criamos um sistema delirante para legitimar nossas idéias mais perigosas e despropositadas. Por conhecer o caráter ilícito de nosso romance precisava agir rápido.

Parti para uma coleta séria de drogas. E vocês sabem (o Duke ensinou) que a tendência é levá-la às ultimas conseqüências. Tomou-me a madrugada de sexta e metade do adiantamento que o editor escorregou por toda a empreitada.

Bom chefe. Cultiva a ilusão de que eu sou o cara que mais entende de música na redação. Talvez por que ele viu um dia minha velha coleção de discos, herdados de um tio doidão. Desde então, uns três anos, eu sou o titular nas coberturas musicais. Viagens, diárias e quetais. Redator de amenidades queixo-me como um sultão por ter prazeres demais.

Peguei o dinheiro e a passagem na sexta à tarde. O avião zarparia no sábado de manhã. Eu marquei com a canadense num hotel na Paulista, duas da tarde. Bebi a noite inteira e me arrastei pro aeroporto assim que o sol nasceu.

ROCK 'N ROLL
Dois festivais da velha música do diabo aconteceriam simultaneamente. O headline de um era o Faith no More de volta ao Brasil, e mais Janes Addiction e não sei mais quem. Do outro, patrocinados por um portal de Internet, Iggy e os Stooges - e também Primal Scream, Sonic Youth e uns menos votados. Era preciso sacrificar um bem menor por outro, sempre em nome do jornalismo. Mais uma vez o editor deixou na minha mão.

Esta ultima escalação é uma curiosa repetição de outro festival em que compareci, anos atrás. Falta de imaginação, venda casada, ação entre amigos? O certo é que a coisa se repetira.

Por essas, o show do Faith no More era a pedida certa. Até por que os caras andavam sumidos. Lembro que eles fizeram um show aqui em Cwb no começo dos 90, no pavilhão do Barigui. Marcou minha geração - composta por caras que foram lá ou lembram que foram sem ter muita certeza (como eu). E as meninas se derretem pelo Patton, que é realmente um cara carismático. Lembro que roubei, nas Americanas, o cd Angel Dust – álbum do suicídio profissional dos caras. Enfim, puta show.

Mas o negócio é que a canadense estaria na área e não era hora de fazer a coisa certa. Ademais, seria na tal chácara do Jockey, onde há alguns meses assisti grande concerto do Radiohead. Prometi a mim mesmo nunca mais pisar naquele buraco de onde é quase impossível ir embora. Os outros shows eram no Playcenter, com todas as montanhas russas liberadas, perto do centro e tal.

Cheguei, fiz o check-in no Íbis, tomei a ducha, uma cerveja e fui fumar na janela planejando as próximas jogadas. A fumaça do cigarro acionou um exaustor no teto e logo telefone tocou. “_ Você está fumando, senhor Sandro? A lei estadual número tal determina que...”.

Porra, a paranóia se instalou pra valer em São Paulo. Nós, como bons jacus, vamos importando-a aos poucos. Mandei o cara à merda e desci aboletar as entradas. Claro que veríamos o Iggy Pop. Obrigatório que se faça antes da morte. Dele e nossa. Todos vamos morrer. Usei uma carteira de estudante falsa para a canadense. Os caras anotam o RG e várias outras coisas no ingresso. Evidentemente, ninguém jamais conferiu porra nenhuma.

AUGUSTA
Nos encontramos finalmente. A folie começou a bater forte. Ela, linda. Falando sem parar com uns amigos viados. Não sei de onde eram. Sei que veriam o outro show – o que me fez ter a certeza de que agi certo.

Tudo o mais foi evento preparatório. Demos umas voltas na rua Augusta. A velha calle do pecado, da lumpenprostituição, dos bares e da malandragem malagueta. Virou uma rua de lojas de roupas descoladas para mulheres descoladas. Caso da minha louca canadense que se fartou experimentando sapatos com os viados enquanto eu tentava achar um bar decente.

PLAYCENTER
Chegamos na hora, na metade do meio caído show do Primal Scream. Bom, pra quem não lembra o Primal Scream é uma velha banda escocesa que sempre alterna bons e maus momentos. Ali eles tavam enganando. Tudo bem. O cenário era propicio. Farsa no velho e decadente parque, com as luzes estilo “pague para entrar, reze para sair”. Meia lotação na platéia, uma área vip desproporcional – há muita gente importante – e garoa paulista.

O patrocinador armou um rede de tv que transmitiu tudo pela net. Repórteres bonitinhas bajulando os músicos e enrolando com os “especialistas”. Gente como Kid Vinil, Massari, os velhos caras da MTV. Na real, foi um show basicamente de velharias. Velhos (e bons) músicos, velhos fãs, velhas canções.

Fez-me lembrar de um outro senhor. “No rock'n'roll, a diferença de idade entre artista e platéia não é grande. Mas, infelizmente, as pessoas na quarta fila imaginam que aqueles em cima do palco saibam de coisas que elas não sabem. E isso não é verdade”, disse o Lou Reed.

Bom, a diferença de idade, entre Iggy ou o Sonic Youth e o público, era significativa. Os caras são bem mais velhos (Iggy nasceu em 1947). E parecem nada desconfortáveis no papel de alguém que sabe muito mais que os fãs. Até por que porque é verdade que saibam, mas já chegamos lá.

Depois do primeiro show meus problemas começaram. A canadense quis ir ao banheiro. Acompanhei-a, cavalheiro, até a porta. Elegemos o bar como ponto de reencontro. Acontece que ela não entrou no banheiro. Saiu decidida em direção ao nada e desapareceu. Concluí que ela deveria estar bem louca e não queria mais papo comigo. Deixei ir. Não há nada mais inútil do que um miserável indo atrás de uma mulher que não o quer.

Fiquei no bar. Matei uma, duas, três Heinekens. Fiz algumas anotações e encontrei conhecidos. Então a demência veio me visitar. Saí puto atrás da canadense. “Porra como é que ela faz isso comigo”, eu pensava até que a encontrei na porta do banheiro, arranhando os braços com umas pedras pontudas. “Você me deixou aqui sozinha” ela soluçava com ódio. A velha folie de dois, a mesma loucura errada compartilhada.

Para acabar com o mal-entendido fiz minhas cenas. Devoção, automutilação, resignação e todo o meu arsenal de mentiras. Convidei-a para fazer as pazes na montanha russa. Foi, com efeito, uma grande idéia. Todos os loops e viradas bruscas e mudanças de humor da parada chacoalharam o nosso sangue entorpecido. Você acha que a coisa nunca vai parar. Quando parou, ficamos no grau certo, quase amor. Chovia. E Thurston e Ranaldo começaram a espancar duas de suas nove guitarras.

SONIC YOUTH
No mundo pós-punk, onde eu me criei, parecia vigorar a idéia de que o rock não passa de esporro em estado bruto. Barulho, doideira e ponto. Uma banda como o Sonic Youth veio provar-me o contrário. O troço pode ter um significado maior, para além do suor e do headbanging. Foi preciso que caras como Thurston Moore ou Frank Black, aparecessem para me dizer umas verdades.
Claro que nada é mais intragável do que rock "sério", pretensioso e babaca. O Sonic é outra parada. Tem as guitarras mais nervosas desde o Black Sabbath, longas suítes, cheias de ruídos e microfonias harmônicas que derretem as mentes fritas. Além das melhores letras, as mais espertas, das melodias mais bonitas. O melhor de muitos mundos em Nova Iorque.

Eles lançaram um puta disco em 2009. E o concerto foi basicamente este repertório com algum ou outro clássico de mais de 20 anos. Os caras estão bem velhos também, mas muito elegantes. “Por dios, isto é o melhor som que se pode tirar de uma guitarra”, eu pensei. Então passei o braço pelo pescoço da canadense. Chovia. Ambos entramos num transe com os copos de cerveja intermináveis e aí pensei que a vida não fica muito melhor que isso.

ALGUÉM VENHA SALVAR MINHA ALMA
Às vezes esqueço que preciso explicar as coisas. Esqueço que é jornalismo: a arte de dizer “Lorde Jones está morto” para pessoas que nunca souberam que ele estava vivo. Tem gente que não sabe quem é o Iggy Pop.

Iggy é o mito, o ícone de rockstar completo. Louco, bonito, avassalador, sacana. A música moderna começa com ele e a influência e as implicações do que fez vai durar para sempre. A única coisa errada seria romantizá-lo demais.

Ele também lançou um baita disco em 2009, Preliminaires. Cantando em francês macarrônico algumas chansons clássicas, umas composições fodas e ate é uma bossanovazinha.
Aqui para nos índios, entretanto, ele não veio cantar em francês. Nem cantar como ele faz de 1980, quando, adolescente, mudou a voz. Veio cantar com os Stooges, caras que com ele e mais uns, inventaram o punk. Hoje são senhores gordos e grisalhos. Iggy ainda é o galã kinky, apesar de arriscar uma barriguinha aos 63 anos.

O concerto era o repertório do Raw Power, feito há 36 anos. Não me admiro que no Brasil se façam sets repetidos, velhas bandas cantem os mesmos números oitocentas vezes. É disso que a infantil insegurança do nosso povo gosta. Não dá pra falar mal. Ele faz o mesmo show velho para bancar o grande disco novo. Por outro lado, não é de se jogar fora a catarse dos Stooges. E a gente sabeque ele vai fazer mais um strip-tease.

Mais outra lição de jornalismo. O velho dandi, Tom Wolfe, diz que a diferença entre o profissional e o cururu é a seguinte: o jornalista vai, pisa e olha. Sempre por ângulos corajosos. Necessariamente algo que o cavalheiro comum não veria das tribunas.

Digo isto, por que conhecendo o mise-en-scéne sabia que, uma hora ou outra, Iggy Pop convida a multidão a invadir o palco. A segurança faz um minuto de vista grossa, neguinho mais malandro sobe e a coisa se torna uma adorável zona. Melhor que isso em um show de rock só quando uma mina poe os peitos pra fora. Tentei convencer a canadense.

Antes de Shake Appeal, ele intimou a galera. “Apenas alguns caras...”. Era a hora. Projetei a canadense pelo alambrado e me joguei também. Invadimos o palco e demos nosso melhor beijo. A verdadeira montanha russa. Um vôo cego. Tarde demais para saltar fora. Você chegou até aqui. Estávamos juntos nessa.

O rock hoje tem história. Os personagens dela, ainda vivos e maltratados, passam por nós. Gritam de um lugar distante, não se dirigem a ninguém. Fazem eco no nosso vazio procurando algum significado. E às vezes encontram. Mas só por uma noite.

DECADÊNCIA
Restava-nos pouco tempo. Depois de tudo, cair na boca da na melhor cidade da América. Pra variar perdi a cabeça. Comecei a dar gorjetas, pegar táxis, a viver além das posses. No outro dia fomos comer no terraço Itália. Um salário mínimo por um um pato com laranja com risoto de lagosta. Quem não conhece o bar do lugar não conhece São Paulo. Uma gaiola de vidro de 360 grados, no 41º andar. Urbe, concreto e decadência. Engarrafamento de helicopteros. Gringos loucos de pó. Uma beleza.

Ela queria fazer um monte de coisas. Ver exposições e bazares. Eu sabia que tudo mudaria de figura assim que viessem os drinques. Ela pediu Kir. Eu um Dry-Martini. A azeitona vinha lancetada por um alfinete de prata. Uma flecha embebida num veneno. Quando eles vieram, usei meu despotismo sem reservas, menino de gênio sobre a alma menos enérgica. “Vamos ficar aqui”. Na verdade era o que ela queria ouvir. “É uma boa garota” eu pensei. E isso é raro e nunca por acaso.

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