sexta-feira, 23 de novembro de 2007

DOIS ENTERROS BRASILEIROS

Convidado a escrever um ensaio pensando o Brasil dos 500 anos (ao lado de outras proeminentes cabeças da nação) o jornalista Ziraldo lembrou de uma história que, para ele, particularmente ilustrativa. A policia de Roma resolveu diminuir a tolerância aos travestis estrangeiros que durante décadas escolheram a ‘cidade eterna’ para desfilar seu “trottoir’. As autoridades romanas botaram pra quebrar, prendendo e devolvendo ao país de origem os rapazes tailandeses, colombianos, espanhóis, etc. E, em maioria, brasileiros - cotadíssimos naquele mercado. O que espantou a policia italiana e chamou a atenção de Ziraldo, foi a reação dos brasileiros à iminente deportação. Não com a triste e resignada vergonha dos outros. Mas com piadas ameaçadoras, de que voltariam “ repaginadas” enquanto riam debochadamente dos carabinnieri. O infalível cartunista acabou por concluir que somos, no fundo , um povo infantil.
Quando no mesmo ano 2000 o jovem Sandro Nascimento resolveu se tornar o capitão da embarcação Centro – Gávea (por nós tantas vezes usada linha 174 – pavão no jogo do bicho) dá pra dizer que ele estava tomando parte na eterna brincadeira de policia e ladrão - em que ele já nasceu escalado segundo time. Desde o momento em que ele deu a voz de assalto (transformado em quixotesco seqüestro) até a hora em que decidiu (depois que a TV tornou o fato, espetáculo* e o Estado interveio de maneira vingativa) que não ia mais brincar, acompanhamos a atuação de uma trágica criança.
O filme Ônibus 174 mostra como ela cresceu no infernal infantilidade da sociedade brasileira. Criança que já nasceu marcada (órfã, bisneto de escravos, nascida no gueto), que viu a mãe ser barbaramente assassinada e foi largado no mundo Sobreviveu, por um diabólico milagre, ao famoso massacre da Candelária** , ao lado dos pequenos inimigos do povo. Criança que se formou com sevicias, privações e torturas nas casas de correção de menores medievais onde encaixotamos as sementes do mal.
O que eu quero dizer (acacianamente, como uma pedagoga de colégio publico) e o que o filme tão bem consegue mostrar, é que a história de Sandro Nascimento não justifica sua violência. Mas explica. O sociólogo (“arroz de festa” quando o assunto é violência urbana) Luiz Eduardo Soares disse que a policia terminou no camburão o que começou na Candelária. Sandro prometeu que ia “matar geral”, mas não matou ninguém. O Estado matou Sandro por vingança e matou a refém por ineficiência aparvalhada.
Inépcia escancarada no documentário. A omissão covarde do Governador (estaria fazendo suas preces falsas? ***), a pusilanimidade do comando da polícia, o “ heroísmo” imbecil e despreparado do policial que atirou na refém e a torpe vingança do Major que estrangulou Sandro. Dia desses, este mesmo Major, em palestra para jovens aspirantes a policiais, ironizou o episódio do assassinato. Foi aplaudido pelos colegas, absolvido pela opinião pública em pesquisas na internet. De seu comandante mereceu leve reprimenda ( “o major foi infeliz”).
Policiais supostamente qualificados e mais humanos, comentando criticamente a ação dos policias no documentário, afirmaram que um atirador de elite bem preparado e uma ordem na hora certa teriam “resolvido” o problema. Esta é uma pergunta interessante Um atirador de elite teria evitado o Holocausto? E mais, hoje em dia, o que um bom atirador e uma ordem na hora certa poderiam fazer pelo bem da humanidade? Quem seria hoje um bom alvo?
Passados já sete anos (da conta dos mentirosos) o mesmo diretor Ônibus 174 de revisita a “guerra particular”, a brincadeira de policia e ladrão no Brasil. Na época do documentário Padilha (este é o nome do homem) foi acusado de profanador, defensor da violência, inimigo do Estado. Hoje ele é o fascista, o edulcurador da violência oficial e um forte candidato ao primeiro Oscar nacional. A realidade da guerra no país é que não mudou.
Nem vai mudar com os filmes de Padilha, com as operações de nome espirituoso da Policia Federal. Não mudou com a ascensão da esquerda ao poder oficial, nem vai mudar com o ultimo relatório da ONU ( descobriram a violência no Brasil e a sua ligação com os problemas sociais). Pois faz parte da nossa eterna infância em berço esplendido. Em Brasília se brinca de passa anel-de-bacharel e de casamento atrás da porta-do-voto-secreto - entre outras danças e quadrilhas. Nossa “mídia” promove a dança das cadeiras dos famosos no gelo. A justiça capricha o esconde-esconde e, em noites de lua, o clássico “gato mia”. E assim o pega-ladrão fica cada vez mais animado.
Os dois filmes, juntos, mostram muito mais do que a desesperadoramente triste realidade brasileira. Mostram, a cada um e a todos nós, de que lado estamos. De que lado está o poder; o público, o de quem tem o dinheiro, o de quem tem os meios de informação. De que lado está a opinião pública (seja refletida no “Ô da poltrona” que ri das torturas, aplaude e não consegue parar de cantar o rap , seja em nós mesmos, nas ruas – com medo e gritando lincha). Quem são os inimigos desta ordem e quem está do lado deles.
A grande diferença do documentário para a ficção me parece a potencial qualidade dos funerais, que os filmes não mostram. Enquanto o funeral ficcional do Baiano ficou prejudicado pela ação do BOPE (e prometia ser o mais animado com a presença da comunidade, saraivadas de balas , uísque com cerveja e outras milongas mais) o funeral real de Sandro Nascimento tinha tudo para ser mais apresentável, levando-se em conta a preservação do cadáver. Pena que ninguém foi ver o miserável enterro de sua ultima quimera.


* Diálogo imaginário entre o diretor de jornalismo da Globo e um assessor, comentando o sucesso da atração da tarde durante um chopinho no bar “A montanha dos Sete Abutres”:
_ Pena que demorou muito, tive que tirar a Malhação, que tava dando pico de quarenta esta semana. E aquele final, não sei não. Não ficou legal...

**Dizem que o cantor e ator Seo Jorge – a cara mais cool da cultura brasileira no mundo – também freqüentava as marquises da Candelária. Hoje ele trabalha em Hollywood, se apresenta a maior parte do ano na Europa e aderiu ao Cansei. O futuro já chegou. Sandro também teve seu filme, seu estrelato, seus minutos de fama.

*** No mesmo ano 2000, uma arquibancada superlotada cedeu ferindo centenas de pessoas , no estádio São Januário, no Rio de janeiro, durante a final do campeonato brasileiro de futebol entre Vasco e São Caetano. Criou-se um impasse sobre a realização ou não do jogo. O comando da Policia alegava que só poderia liberar o prosseguimento da partida mediante expressa autorização do então governador Anthony Garotinho. Diante da demora da decisão oficial o presidente do Vasco, Eurico Miranda ( eterno vilão do futebol brasileiro) saiu-se com essa:
_ O Governador está ocupado. Ele deve estar fazendo as suas preces falsas pra Jesus...

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