segunda-feira, 7 de julho de 2008

Café de Repartição

Difícil lembrar de algum artista brasileiro das letras que não tenha enfrentado a fatalidade da burocracia. Uma tradição, antiga como o próprio país, estabeleceu que uma das funções do Estado seria a de subvencionar o mínimo de conforto e dignidade das nossas melhores cabeças. Sabemos que Machado de Assis foi funcionário. Nem o nosso maior escritor escapou do destino da sinecura. E com ele muitos outros. Podemos lembrar de Drummond, Manuel Bandeira, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos... Até o grande Cartola foi contínuo em um ministério destes - depois de resgatado da obscuridade por Lucio Rangel e Sergio Porto. Dupla de homens de letras que também serviu ao Estado, em algum momento.
Parece-me justo e nobre que assim seja e digo mais; o Estado teria até certa obrigação, como que um escrúpulo resgatado ao prover o ganha pão destas almas que escreveram em papel marca d’água o caminho da inteligencia brasileira. Não um trabalho muito elaborado ou de grande responsabilidade. Algo que permita ao funcionário público imaginar um elefante como Drummond, ou gazetear por toda uma tarde. Sair para ver o mar, encontrar uma mulher, ler um bom livro ou simplesmente flanar pela cidade garimpando uma daquelas crônicas que nós tanto gostamos.
Em outras épocas só não foram cooptados pela mão invisível do Estado aqueles que desde muito cedo encararam para valer a tarimba de um jornal. Mesmo assim desde que acumulassem vários empregos simultâneos. Nelson Rodrigues é um exemplo. Mas no seu caso, além do inegável talento, ajudou o fato de seu pai ser o dono da publicação. Millor Fernandes é outro que entro num jornal de calças curtas para nunca mais sair.
Porém, sempre cheia de saltos é a vida de um homem dedicado a mister tão prosaico e tão inverossímil como este de escrever . Nunca demais a tranqüilidade de um salário e benefícios, por menores que sejam. Dão a possibilidade de seguir em frente, enganar os credores, comprar um sapato novo para acalmar a mulher, de pagar a conta da luz para escrever à noite e, com alguma sorte, até garantir o “uisquinho das crianças”. Oferece a chance e o tempo de tenta seduzir um editor, de que morra uma de insensíveis e renasça uma geração de leitores tolerantes, para que a vida siga seu curso. Muitos escritores tentam convencer vários editores até decidirem escrever para a posteridade. Mas voltemos aos burocratas.
Há funcionários e funcionários. Charles Bukowski foi carteiro (como meu grande amigo, também escritor, Sandro Michaelev). Jorge Luis Borges teve mais sorte – foi diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires. Não tanta sorte como a de Vinicius, Guimarães Rosa e Manuel Bandeira – entre outros – que integraram o corpo diplomático. Bela carreira. Inclui viagens, grandes jantares protocolares e despesas pagas – tudo muito apropriado para quem tem por oficio primeiro, escrever.
Existe a oportunidade do magistério, da vida acadêmica, professoral. Do mundo dos tratados, das teses e das conferencias. Um caminho algo aborrecido e perigoso. A escola sempre atrapalha a educação das pessoas. Há também o abjeto canto da sereia da televisão. Da mesma maneira, pouco recomendável. Ainda não foi inventado nada como um bom posto, um cargo singelo (“ secretário adjunto da sub-relatoria” por exemplo), para emprestar um pouco de paz a alma amarfanhada de um escritor. Só assim, com o aluguel pago, ele pode se dedicar a esta grande e vazia de sentido abstração que é a vida do escritor.
Do alto da minha pretensa obtusidade devo confessar que também militei algum tempo, na carreira de burocrata menor. Longe de querer me colocar perto dos nomes citados . Mas mentiria por omissão se não contasse que cheguei a delirar. Imaginei-me iniciando uma fulgurante carreira de escritor, as expensas do Erário. Seja municipal, estadual ou federal, já fui empregado nas três esferas administrativas. Com a má-intenção de me entregar ao conto, ao poema, ao romance e à inspiração na maior parte do tempo. Pulei de galho em galho no funcionalismo, durante alguns anos. Trabalhei como continuo carimbador maluco, fiscal, emitindo pareceres e em outras sub-ocupações. Por algum motivo, todavia - imagino ter descoberto hoje e logo revelarei – a minha carreira não decolou.
Mesmo de posse de um crachá, com acesso a maquina de fotocópias, bom repertório de piadas para os momentos de ócio, com as melhores estratégias para burlar o livro ponto, contando com a boa vontade de chefes de seção, telefone, máquina de escrever (sou século passado) e depois computadores à disposição por longas tardes, alguma coisa deu errado.
Acredito, olhando em retrospectiva, que a culpa foi do intragável café de repartição. Aquele indesculpável café - coado e adoçado ao mesmo tempo. Crime hediondo só comparável ao erro de revisão. Impede uma boa metáfora, descompõe qualquer métrica, desfaz o melhor argumento, inibe a figura de linguagem, obnubila a retórica e acaba com o senso de humor o café coado e adoçado simultaneamente.
Eis, portanto, razão de uma promissora carreira ter sido abortada tão cedo. O motivo de tão cedo toda uma obra que se prometia imortal ter “despontado para o anonimato”. Como bom funcionário conseguia engolir muitos sapos. Mas nunca engoli o café doce das repartições públicas.

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