segunda-feira, 7 de julho de 2008

Onde estão os negros ?

Certos homens possuem o dom especial de tornar incompreensíveis as coisas mais simples deste mundo, como bem observou Breton. Às vezes vale o binômio rodrigueano da “má-fé cínica” aliada a “obtusidade córnea”. Muitas vezes a dificuldade de expressão. Às vezes as duas coisas ao mesmo tempo. Isto me faz pensar em Jean Paul Sartre. Homem contraditório. Tão brilhante e tão acaciano.
Sartre esteve no Brasil , em 1960. Ao lado de sua Simone, e guiados por Jorge Amado, correram o país. Todas as noites lhe arrumavam um púlpito, um palco e uma platéia. Conferencista nato, o homem falava de tudo e de todos – revoluções, amor, metafísica e os cambaus (até teria dado palpites para a recém criada Loteria Esportiva). Não lhe faltava audiência, sempre pronta para o aplauso de pé a cada pigarro mais eloqüente. Numa noite que entrou pra nossa história –foi transformada numa piada fatal - ele fez a celebre pergunta:
“Ou son lês negres ?”
Ao perceber que a claque que o perseguia e adulava era de bem nascidos aspirantes a intelectuais da juventude dourada de Ipanema. Não existia um único e escasso negro entre os existencialistas brasileiros. Dizem que dois representantes da esquerda cervejista cochicharam, com abjeto cinismo: _ Devem estar por aí assaltando algum chauffeur...”
O que o nosso Jean Paul não sabia, nem sequer pressentia, é que os negros estavam no mesmo lugar onde sempre estiveram no Brasil. Fora do esquema, embaixo do tapete, na terceira margem do Rio, no Quilombo. Otto Lara Resende conta, que o francês disse-lhe na ocasião, com alguma surpresa: “Até nos Estados Unidos os negros participam mais”. Taí, o que eu falei. O gênio acaciano.
Talvez Sartre fosse mais um daqueles que esperavam, (ou querem por que querem) forçosamente, encontrar aqui a proverbial democracia racial. Seria realmente ótimo se o Brasil fosse esse paraíso mestiço que os “não-racialistas” (para usar a expressão do momento) apregoam. Nunca foi. Não é. E ainda vai muito longe o dia.. A comparação com os EUA é ilustrativa.
O Brasil está atrasado em pelo menos cinqüenta anos com relação às conquistas sociais do povo negro nos Estados Unidos. E o pior é que aqui nós, herdeiros da mesma barbárie e do descaso que vitimou a sociedade norte-americana , vimos sendo, há mais de 120 anos forçados a acreditar que neste país “alegremente mestiço e desracializado”, nunca houve segregação, perseguição, nem a KKK, que “raça não existe” ... Diz-se, cinicamente, que nossa inferioridade deve-se apenas a problemas econômicos e pode ser zerada com boas escolas e boas merendas para todos e não sei mais o que..
Na sociedade brasileira, salvo umas duas ou três exceções, a real presença do negro e a sua mistura com outras etnias da população só se verifica nos andares de baixos, entre aqueles estratos que não têm acesso à mobilidade social. A condição é, portanto, quase sempre, um fator de perpetuação da exclusão. Certamente por isso é que o conservadorismo e o racismo atuais a defendem.
Principalmente agora com o poderoso exemplo do impertinente candidato democrata norte-americano Barack Obama, que defende em campanha uma democracia racial nos EU. Os homens nunca mentem tanto quanto depois de uma caçada, durante uma campanha política ou para tentar seduzir uma mulher.
No momento nosso Congresso Nacional prepara a votação do Estatuto da Igualdade Racial. Um grupo de intelectuais estouvados e artistas obtusos (e sempre os há) reage, contrário à aprovação do texto. Falam de uma “grave ameaça” na divisão da sociedade brasileira em “negros” e “brancos”. Que não se pode oficializar esta secessão, como se essa divisão, em termos de poder, oportunidade e capital, já não fosse a grande característica da nossa sociedade.
E os “desracializadores” apontam Obama para nós como se fosse o dedo fura-bolo. Como se dissessem: “Olhem só? Ele não exibe a cor da pele como uma arma ou um escudo!”. E aí, vem o jornalista Ivan Martins, da revista Época (Editoras Globo), pergunta, em recente reportagem: “Quanto tempo, porém, será necessário para que se produza um líder como Obama no Brasil?”
Ora, não queimemos etapas, meu caro jornalista. Chegaremos lá. Mas, antes precisamos passar pelo deputado da novela das oito.
Se Sartre baixasse de novo no nosso terreiro, talvez não fizesse a patética indagação. Veria sim alguns negros entre seus apóstolos. Defensor que sou de todo tipo de ação compensatória ou afirmativa que vise, mesmo experimentalmente, à erradicação ou pelo menos a uma melhor compreensão do racismo brasileiro sei que a platéia de acadêmicos hoje comportaria um numero – pequeno – de negros e mestiços. Graças a exatamente este tipo ação afirmativa que o novo-racismo, silenciosamente, tenta combater. Só não percebe mesmo quem tem “má-fé cínica” ou obtusidade córnea”.

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